Em tempos de crise política para todos
os lados, na saúde, na economia, na administração, na ética, todo dia vemos
autoridades dando declarações questionáveis, parciais, omitindo fatos,
distorcendo a realidade. Com a maior desfaçatez políticos comparecem à cena
pública descaradamente mentindo. Por que, se todos sabem que não é verdade?
Simples: porque funciona.
Há
anos sabemos que nossa memória é cheia de falhas, podendo inclusive ser
moldada, nos fazendo lembrar com clareza de coisas que nunca aconteceram. São
as chamadas falsas memórias. Bem mais
recentemente, contudo, cientistas vêm se voltando para o estudo de outro tipo
de memória, que se mostra também bastante maleável: nossa memória
coletiva. Seara de estudos teóricos, sobretudo da Sociologia e
da Ciência Política, novos trabalhos empíricos começam a mostrar que as coisas
das quais nos lembramos como grupo também estão sujeitas a manipulações –
intencionais ou não.
Como
o mundo é complexo e a história é intrincada, cheia de ambiguidades, idas e
vindas, áreas de penumbra, é impossível recordar os eventos humanos com
precisão científica (do ponto de vista da ciência histórica). Em vez disso,
criamos narrativas com começo, meio e fim,
necessariamente montando uma versão simplista,
dentro do alcance de nossa capacidade de processamento cerebral. Nesse
processo, contudo, deixamos muita coisa de fora, apegando-nos a pontos mais
importantes ou relevantes, seja por sua carga emocional (como tragédias,
grandes acidentes etc.), seja por terem sido enfatizados para nós. É aí que
entram os políticos caras-de-pau, com perdão da redundância.
Se
você já se espantou com o tanto que as pessoas mudam ao longo do tempo sem que
a gente note – coisa de que só nos damos conta ao ver uma foto antiga, por
exemplo – sabe como nossa memória é continuamente atualizada pela entrada de
novos estímulos.
Sem perceber nós corrigimos as lembranças, introduzindo
elementos que surgem e apagando detalhes que
não são mais apresentados. Isso acontece também nos discursos oficiais: quando
se manifestam publicamente sobre algum evento, os políticos estão eles mesmos
criando narrativas simplificadas para nosso consumo. E aquilo que eles deixam
de fora tende a ser esquecido por quem os ouve.
Essa ideia foi testada em 2014,
quando pesquisadores avaliaram o impacto de um discurso do rei da Bélgica sobre
seus cidadãos. No meio de uma grande crise política no país os cientistas
distribuíram questionários para as pessoas tocando em quatro questões nacionais
relevantes. Mas em sua fala o rei Albert II não passou por todos os pontos, só
por dois deles. Respondendo o mesmo questionário posteriormente, as pessoas que
ouviram o discurso tiveram mais dificuldade de lembrar corretamente os detalhes
sobre os assuntos abordados pelo monarca: sua fala seletiva, simplificando as
questões, modificou o padrão de recordação de parte dos cidadãos, que se
esqueceram com mais frequência justamente dos detalhes omitidos.
É
assim que as mentiras funcionam. Seu objetivo não é só nos
fazer crer nas coisas, mas também nos
fazer esquecer. Se já era assustadora a frase de Goebbels,
ministro de propaganda de Hitler, segundo quem uma mentira repetida mil vezes
se torna verdade, mais perigoso ainda é saber que uma verdade omitida uma única
vez já está no caminho de se tornar mentira.
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